A falácia dos testes em animais em cosmética

Ninguém nunca testou em animais por ser um cientista sádico ou por ter desejo de sangue, até porque efectuar testes em animais é ridiculamente dispendioso. Os animais utilizados não são os nossos animais de estimação, são animais geneticamente modificados para terem um genótipo conhecido, com determinadas características padronizadas, criados em condições matematicamente idênticas e com um ambiente altamente controlado (humidade, temperatura, luz, som, etc.). Já trabalhei em biotérios (onde estão os animais) e nunca conheci nenhum cientista que trabalhasse com animais e não os tratasse com o maior respeito possível por aquilo que é considerado um precioso objecto de estudo. Estes biotérios a que me refiro eram para estudo de fármacos e não de cosméticos.

Começo este post por dizer que nenhuma da informação que aqui vou prestar se trata da minha opinião, mas sim de regras ou leis. Fica o exemplo para quem tem dificuldade em distinguir: eu posso ser da opinião que o limite de velocidade na auto-estrada é de 160 Km/h mas, isso não altera a lei que diz que o máximo é de 120 Km/h, nem vai impedir um polícia de multar alguém que exceda esse mesmo limite. Estamos todos na mesma página?

Relativamente aos testes em animais, vamos começar do início. Os testes em animais são feitos desde que foi decretada a necessidade de aferir a segurança dos produtos cosméticos. De uma forma geral, são utilizados para aferir a DL50 de matérias-primas de produtos cosméticos, que é a dose-letal 50, uma medida da dose tóxica de um produto quando ingerido, inalado ou aplicado na pele (conforme aplicável ao produto em questão naquilo a que se chama utilização razoavelmente previsível de um produto). Reparem que falei de matéria-prima e não de produto acabado. Raros são os casos em que não se toma como verdade que o total é igual à soma das partes ou seja, que um produto final é testado em animais, já que todas as partes que o constituem foram anteriormente consideradas seguras. Exemplo: uma sopa leva batata, cenoura e espinafres. Se as batatas já foram consideradas seguras por exposição e utilização continuada ao longo de séculos (matérias-primas como a glicerina e outras mais “antigas”), se as cenouras foram testadas em ratinhos (digamos, uma matéria-prima inovadora) e se os espinafres são usados a nível alimentar (ex: ácido láctico, algumas enzimas, etc.) logo, a sopa será segura. Adicionalmente, alguns ensaios de reactividade também eram efectuados em animais, segundo sei. Como excepção a esta filosofia está e sempre esteve, a China, que obriga ao teste dos produtos finais em animais, mas vai deixar de o fazer, em breve.

Até aqui, estão comigo?

Em 2013, devido a muita pressão exercida pelos consumidores, a UE emitiu um regulamento que decretava a proibição total de utilização de animais de experiência no desenvolvimento de produtos cosméticos. Foi inesperado e, segundo a comunidade científica, precoce, uma vez que os métodos instrumentais ainda não se encontravam (nem encontram, na sua totalidade) suficientemente desenvolvidos para permitir a substituição. Por muito que actualmente já existam alternativas como pele artificial, neste caso, a soma das partes (ou órgãos) não substitui o todo, ou seja, o corpo todo. Assim, viu-se uma estagnação completa no desenvolvimento de novas matérias-primas e produtos inovadores com veiculações diferentes de ingredientes. Perante os ruidosos protestos da indústria, a UE emitiu em 2006, guidelines de orientação face à nova lei, que pouco ajudaram. Naturalmente, foram pensadas inúmeras alternativas por parte das empresas de desenvolvimento de matérias-primas de cosmética (que já agora, produzem matérias-primas para todas as indústrias químicas) para contornar esta restrição. A alternativa é simples e estava ali à mão de semear: bastou iniciar a investigação das matérias-primas como se o seu objectivo de utilização fosse a indústria farmacêutica ou outras. E assim se continua a aferir alguns cálculos para assegurar que a sua utilização em humanos é segura.

Embora o princípio seja nobre e seja, muitas vezes, necessário forçar a mudança, a verdade é que todo o produto cosmético que algum dia utilizem na vossa vida até hoje FOI TESTADO EM ANIMAIS de uma ou outra forma e em algum ponto no tempo e isso permitiu garantir que nem vocês, nem os vossos filhos e/ou entes queridos morreram intoxicados devido à sua utilização.

Posto isto, resta -me esclarecer que as matérias-primas só são testadas uma única vez e são usadas em milhares de produtos. Cada produto em si e na Europa não é testado em animais (isto não distingue umas marcas das outras e é só marketing e propaganda emocional), é sim analisado por um especialista que faz cálculos e atesta que o produto é seguro para utilização em humanos.

Adicionalmente, deixo-vos com a parte excelente que esta imposição da UE nos trouxe foi uma parceria de desenvolvimento de métodos alternativos ao teste em animais com respectivo financiamento para compensar quem desejar criar alternativas.

Por isso, da próxima vez que vos pedirem para assinar uma petição para salvar coelhinhos, enviem à pessoa este link, informando-a de que tais testes são proibidos em toda a UE e, já agora, queridas marcas, também é proibido utilizar a claim de que não são testados em animais na Europa. Continua, no entanto, a ser verdade que existem países que ainda testam, pelo que se este é um assunto que vos preocupa, aconselho um pouco de pesquisa acerca dos países que ainda testam em animais e se esses produtos são comercializados nesses mesmos países.

Relativamente aos testes na China e, porventura, em outros países que desconheço: estes testes são uma obrigatoriedade legal do governo Chinês. Não são as marcas que os fazem, mas sim o equivalente ao Infarmed chinês e são um pré-requisito obrigatório para comercializar na China. Sendo a China um mercado de milhões e em expansão exponencial no que toca à cosmética, é um pouco difícil às marcas recusarem-se a comercializar na China, sofrendo perdas milionárias para exercer uma posição ética que nem é decidida pelas mesmas, mas sim pelo governo.

Espero ter ajudado a esclarecer este assunto, se gostaram do post, por favor dêem feedback e partilhem com quem gostaria de saber esta informação.

5 Comments

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    Adorei o post, super informativo e relevante.

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    Joana says:

    Olá Sara! É muito interessante a informação mais científica que nos trouxeste, muito obrigada!
    Gostaria, ainda assim, de te alertar para um ponto com o qual não concordo contigo. O limite de velocidade por lei é uma medida de segurança. 120km/h foi a velocidade que o governo entendeu como máxima segura para diminuir a sinistralidade.
    A imposição de testes em animais pelo governo chinês não é mais do que o espelho de um país que pouco ou nenhuma consideração tem pela vida animal. Se procurares vídeos de YouTubers que foram viver para a China, alguns falam melhor sobre isto.
    Para algumas pessoas, o facto de saber que na Europa os cosméticos não são testados em animais poderá ser suficiente para continuar a usar os seus cosméticos favoritos ou a ser pago pelas respectivas marcas para as divulgar. Apesar de não concordar, respeito as decisões de cada pessoa. O que me deixa revoltada é quando as marcas anunciam que não testam em animais e, ao mesmo tempo, vendem na China. Eu, pessoalmente, não financio essas marcas e acredito que, por muito grande que seja esse mercado, se todas as marcas o boicotassem, o governo chinês teria de abrir os olhos e adaptar-se.
    Já agora, poderias indicar-me a fonte de onde tiraste a informação de que os testes na China terminarão em breve?
    Obrigada!

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      Olá Joana, o limite de velocidade é um exemplo ilustrativo sobre a diferença entre factos e opiniões, não é a minha opinião. Procura online, foi anunciado algures este ano pelo governo chinês que está para breve 🙂

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    Óptimo artigo! Não fazia ideia! Sou vegetariana mas percebo completamente a necessidade de testar a toxicidade das substâncias em animais enquanto outro tipo de técnicas não estão evoluídas o suficiente. Pena isto passar por cruelty free quando na realidade isso não é possível (ainda). Serve somente para apaziguar as mentes dos consumidores com este tipo de preocupações, vendendo algo que, na prática, é uma mentira. E vilanizar a China é o pão de cada dia. Aparentemente nada do que vem desse país pode ter o mesmo valor do que o que fazemos por cá. Dá jeito, não é?

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      É isso e usar estas claims emocionais fazendo-se passar por marcas com éticas acima da média é desleal, cada vez mais.

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